O NOVO CICLO
Em 2008, quando iniciei meus trabalhos no Atelier Yamaha Brasil, o espaço técnico mais preparado da marca no Brasil e provavelmente naquele momento, o mais completo atelier de toda a América Latina, tive acesso a materiais e documentos que consolidavam todas as informações e minhas teorias quanto à importância da manutenção do instrumento musical, porém, abrindo uma nova vertente de que eu não havia dado tanta atenção até aquele momento, a saúde do músico!
Inconscientemente, dado ao episódio da barata, eu já tinha muito cuidado com o instrumento por saber que insetos, fungos e bactérias poderiam desenvolver-se dentro do instrumento, no entanto, até aquele momento, não era um dos pilares principais de meu trabalho e então decidi mudar isto.
Iniciei um ciclo de pesquisa pessoal, comparando instrumentos de diversos músicos de diversos estilos musicais e de diferentes regiões do país, comparando suas condições de higiene, saúde do músico e nível musical de cada um.
Os resultados foram preocupantes, porém, ao mesmo tempo muito importantes porque passei a me sentir como um “embaixador” da defesa da importância na manutenção do instrumento musical e sinto sempre a responsabilidade de propagar ao maior número de músicos possível, o resultado destas experiências que tive durante todos estes anos.
A CONSTATAÇÃO DE DIVERSOS CASOS
Viajando pelo Brasil, passei por diversos estados e cidades de norte a sul do país. Dentre os 26 estados do Brasil e o Distrito Federal, eu somente não visitei: Acre, Amapá, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Roraima, estados estes que ainda desejo visitar e completar minha pesquisa pessoal.
Em minhas viagens no Brasil, durante 8 anos de trabalho e em diversas cidades de mais de 20 estados brasileiros, tive a oportunidade de palestrar sobre o assunto e me deparar com casos importantes de pessoas que tiveram casos de doenças relacionadas com instrumentos musicais.
Quero citar e documentar aqui neste artigo alguns intrigantes casos encontrados por mim, dentre muitos outros.
O TROMBONE E O MÉDICO
Em um evento na Universidade Federal da Bahia - UFBA, quando palestrava sobre o assunto e comentava sobre os possíveis sintomas físicos para poder detectar um instrumento com deficiência na manutenção, um trombonista pediu a palavra e me contou seu caso pessoal.
O músico que era um estudante bem jovem, comentou que em um determinado momento de seus estudos musicais, começou a sentir fortes dores de cabeça, queimação no estômago, falta de concentração nos estudos e mau hálito. Ele pensava ser algo relacionado com a alimentação, e então, iniciou uma jornada de mudanças em seu cardápio e costumes, porém, as mudanças não alteravam em nada os sintomas que sentia.
A pedido de seus familiares, decidiu então consultar um médico da pequena cidade em que nasceu e no período de férias da universidade, ele regressou a sua cidade e marcou uma consulta com o médico.
Chegando ao consultório, contou o que sentia para o doutor que em seguida lhe fez uma simples pregunta: “O que você faz da vida.?” E o jovem respondeu de imediato que somente estudava.
O médico olhou seriamente nos olhos do paciente e lhe disse, IMPOSSÍVEL! Você deve fazer algo mais que estudar na vida, não?
Então, o músico disse ao médico que tocava trombone e que estudava música na universidade. Foi então que sem pestanejar, direto e muito sério o médico lhe disse para voltar para casa e lavar o instrumento musical. O paciente perguntou se ele não iria pedir nenhum exame ou se não iria fazer nenhuma indicação diferente de “lavar o trombone”, e o doutor disse que não, que isto era tudo e que lavar o instrumento musical, seria o suficiente.
Contrariado e muito bravo com o médico, pois se sentiu constrangido pelo doutor como se ele não soubesse cuidar de seu instrumento e que não tinha higiene com o mesmo, voltou para casa e como não havia mais remédio, buscou informação de como lavar o instrumento. Comprou os acessórios para fazer a manutenção e passou a lavar o instrumento periodicamente.
O resultado foi imediato, as dores de cabeça desapareceram, os sintomas e incômodos estomacais que tinha desapareceram e sua concentração nos estudos melhorou substancialmente.
Com este resultado, ele aprendeu que necessitava manter a manutenção, porém, não sabia o motivo ou o PORQUÊ de tal resultado.
Na minha palestra, como abordamos as causas, problemas e resultados, ele teve uma clara visão do que aconteceu e, nesta ocasião em que nos contou o seu caso, disse que se dedicaria a partir daquele momento, tempo de sua vida para explicar também aos seus colegas de classe para que tivessem atenção ao assunto e que não sofressem o que ele sofreu por falta de informação.
UMA TUBA A MENOS
Certa vez, em uma palestra de manutenção em que eu ministrava no quartel da polícia militar no estado do Mato Grosso, durante minha apresentação, quando comentava sobre alguns casos de problemas de saúde conectados com a falta de manutenção, um militar que estava trabalhando na administração parou seu trabalho e se dirigiu até onde eu estava.
Era um evento de que reunia bandas da Polícia Militar, do Exército e do corpo de Bombeiros e tínhamos mais de 100 pessoas neste evento.
O militar um pouco sem jeito, mas muito decidido, me pediu desculpas por interromper minha palestra, mas que teria algo a dizer muito importante.
Eu que normalmente falo muito, pensei que seria algum aviso sobre o tempo para finalizar o evento ou algo parecido, mas para minha surpresa, era um impressionante relato de sua própria história de vida.
Ele iniciou pedindo desculpas a todos e disse que enquanto trabalhava na administração, não pôde deixar de ouvir minhas palavras por ser um assunto de extrema importância o que eu estava expondo a todos naquele momento e que para reforçar o que eu estava dizendo, como também para que seu testemunho pudesse ser somado aos diversos casos que eu comentava, ele contou sua história dizendo:
- Muitos de vocês não me conhecem, mas eu era um integrante desta banda de música da Polícia Militar. Toquei meu instrumento por muitos anos e era apaixonado pelo que eu fazia, me alegrava em fazer música e me sentia um menino cada vez que pegava meu instrumento para tocar.
- Um certo dia, comecei a ter problemas estomacais e fortes dores abdominais, além de queimação e dores de cabeça, fui ao médico e então iniciou-se uma saga de consultas e exames que duraram vários meses. Tomei remédios e fiz todo tipo de tratamento, mas nada funcionava.
- Com o passar do tempo, meu médico disse que o último passo que poderíamos dar para tentar resolver o problema seria que eu não tocasse mais a tuba.
Eu muito contrariado tive que aceitar a proposta do médico: “parar de fazer o que tanto amava e iniciar um novo trabalho na área administrativa do quartel”.
- Já se passaram 4 longos anos desde que parei de tocar a tuba e já faz 4 anos que não tenho mais o problema de saúde.
- Meu médico nunca soube me explicar o motivo pelo qual o instrumento me causava problemas, mas hoje, finalmente e depois de 4 anos, ouvindo o Sr. Araken contar tudo isto, pude descobrir o que aconteceu.
- No meu caso, a tuba pertencia ao quartel e eu havia tocado ela por muitos anos, porém nunca havia limpado internamente o instrumento e certamente minha falta de cuidado com o instrumento ocasionou todos os problemas de saúde que eu tive.
- Por isto peço de coração a todos você, que escutem com atenção suas palavras e que as compartilhe ao máximo de pessoas, porque eu sei que em algum lugar, neste momento, por problemas de saúde conectados com a falta de manutenção, existirá uma tuba a menos tocando em uma banda ou orquestra.
- Agradeceu a todos e com um abraço muito emotivo, o militar retornou ao seu trabalho administrativo com lágrimas escorrendo em seu rosto.
Foi uma experiência emocionante e ao mesmo tempo triste de ver alguém que possuía tanto amor e conexão com a música, ver-se afastado de seus sonhos pela falta de informação, e casos como este me serviram para gerar cada vez mais força para levar a informação e a formação, ao máximo de pessoas possível.
A NAMORADA E O BEIJO SOFRIDO.
Uma das experiências ao vivo que tive com a manutenção de instrumentos musicais e a saúde do músico foi em um workshop de manutenção que ministrei para o projeto Sopro Novo Yamaha em uma cidade do interior de São Paulo.
Era um evento conectado com bandas evangélicas de uma instituição e que tinha como público os professores e alunos de diversas bandas desta instituição. Passei com eles alguns dias ministrando palestras, workshops além de jornada de ajuste e reparação dos instrumentos dos participantes.
Em uma das palestras, durante minha fala e como de costume, após contar alguns destes casos eu sempre pergunto se alguém deseja trazer seu instrumento à frente para que possamos trabalhar no instrumento na frente de todos.
A ideia é provar na prática que o mesmo músico, com o mesmo instrumento, pode tocar mais e melhor após uma manutenção básica ser realizada.
Sempre peço ao músico para tocar algo e que os ouvintes possam guardar na memória o som e a forma com que o músico toca seu instrumento, após tocar para todos, fazemos uma verificação do estado e condições da boquilha e do instrumento, avaliamos se o instrumento está bem mantido em termos de manutenção básica e então fazemos uma simples manutenção.
Após a limpeza e ajuste do instrumento, o músico toca novamente e todos comparam o que havia tocado com o resultado após a manutenção, sempre é uma grata surpresa para o músico e para o público.
Neste dia, após explicar todos estes detalhes aos participantes, fiz o convite para que alguém viesse à frente, porém foi inútil, pois ninguém quis se aventurar a expor seu instrumento pessoal frente a todos.
Foi então que algo diferente aconteceu, uma jovem que estava sentada, discretamente apontou o dedo a um jovem que estava ao seu lado e o mesmo balançou a cabeça com uma feição séria no rosto.
Era uma menina bem jovem e ainda que todos sorrissem naquele momento, seu rosto sóbrio e sério me chamou a atenção, confesso que me senti até pressionado por seu olhar tão decidido e firme.
Como ninguém se aventurava ou se candidatava à experiência, decidi atender ao pedido da jovem e disse para o companheiro dela, “de livre e espontânea pressão”: você foi o escolhido! Por favor, pegue seu instrumento e venha participar de uma emocionante aventura.
O jovem relutou por alguns segundos, porém, o incentivo de todos o fez levantar e vir à frente com seu trompete na mão.
Segui então meu protocolo e lhe pedi para tocar algo, foi uma grata surpresa porque o jovem trompetista tocava muito bem e todos aplaudiram o garoto.
Pedi então para ver seu instrumento e bocal para saber em que condições se encontravam. O bocal estava bem sujo e amassado na parte de saída do ar. Desamassei o bocal, alinhamos a circunferência e lhe pedi para tocar outra vez.
Era impressionante sua aparente facilidade ao tocar e o conforto que transmitia com a feição do seu rosto. Além disso, reproduzia um som mais claro, com mais harmônicos e mais projeção.
Então, passamos para o instrumento e retirei a bomba principal de afinação. Foi um trabalho extra porque saia com muita dificuldade, parecia não ter recebido nenhuma graxa há muito tempo.
Quando retirei a curva, olhamos contra a luz para ver o estado do tubo principal do instrumento, o leadpipe e a surpresa foi imensa: “a luz mal passava pelo tubo!”
Peguei uma haste flexível de limpeza e comecei passar no tubo em uma posição para que todo o público pudesse ver o que iria sair do instrumento.
Tenho que confessar de que nunca havia visto nada igual, um dedo de uma composição pastosa começou a sair do tubo e não parava mais, parecia um lodo ou uma gosma cinzenta e molhada. Saiu uns 10 centímetros de sujeira em forma tubular, eu não podia entender como ele conseguia tocar com este instrumento naquelas condições.
Após limpar o tubo principal, tivemos que desmontar todo o instrumento devido a quantidade de sujeira que havia internamente, ou seja, todas as partes e pistões.
A cara de nojo dos que estavam ali, era geral, incluindo a do próprio dono do instrumento que, claro, me havia dito que limpava periodicamente seu instrumento, mas que claramente, era uma grande mentira.
Após toda a limpeza e ajuste feito, “eu tive em alguns momentos vontade de vomitar”. Montamos o mesmo e pedi ao jovem para tocar novamente para todos.
Foi um espetáculo!
O jovem foi aplaudido de pé, inclusive por seu professor que disse não conhecer até aquele momento, todo o potencial musical que tinha o músico até ouvi-lo tocar o instrumento limpo.
Um sorriso extra estava no rosto da jovem que me indicou o músico e me chamou a atenção seus olhos lacrimejando.
Ao final do evento, a jovem veio falar comigo e me agradecer. Ela me contou que o músico era o namorado dela e que ele tinha um problema de mau hálito muito forte, que já estavam há mais de 1 ano indo ao médico, fazendo exames e tentando tratamentos e nada funcionava.
Disse que quando escutava minhas palavras durante a palestra, buscou em suas lembranças se alguma vez ele havia limpado o instrumento, e foi aí que ela percebeu que ele nunca havia feito isto e decidiu pedir para eu atendê-lo.
Ela me agradecia porque dizia ter certeza de que ali estava o problema do mau hálito porque nenhum especialista havia encontrado algum problema de saúde ou causa do mau hálito.
Assim, eu sai daquele evento muito feliz, sabendo que mais uma vez todo meu esforço em propagar a informação e formação havia tido efeito, e realmente, após alguns meses, em um novo contato, pude confirmar de que o jovem trompetista estava livre do problema de saúde e que enfim, podia beijar a sua namorada sem fazer disto um martírio para a pobre jovem.
Sempre repito que o instrumento musical de sopro não causa problemas de saúde para o músico, pelo contrário, melhora em muito a capacidade respiratória de uma pessoa.
O que causa problemas de saúde é a falta de cuidado e de higiene pessoal do indivíduo, seu mal hábito combinado com uma falta de responsabilidade com a manutenção periódica do instrumento, certamente, é o causador de estes problemas.
continua na próxima postagem!
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